quarta-feira, 10 de maio de 2023

Lições de sábado 376

A outra mãe

Minha mãe fazia aniversário em 13 de maio, que, vez ou outra, caía num Dia das Mães e, por isso, nunca comemoramos o Dia das Mães, mas somente o seu aniversário, por ser mais importante. Dia comercial que inventaram para vender mais presentes. O mesmo para Dia dos Pais, Dia das Crianças, Dia dos Namorados, Dia dos Avós, Dia da Secretária e mais de tudo e qualquer outra coisa que quisessem inventar. 

Os dias foram feitos para comemorar tudo. Antes eram os Santos, além do Natal e Ano Novo, Carnaval, Páscoa, Corpus Christi, quando já foram os Sabás celtas que determinavam as estações e a passagem do tempo. Em junho, temos dias de três santos: Santo Antônio, São João e São Pedro, mas também comemoramos outros espalhados pelo ano. 

Mas era do Dia das Mães que eu queria falar: quando minha mãe chegou aos setenta, ela mudou. Deixou de ser tão exigente, porque achava que não adiantava mais. E até o seu falecimento em 2014, aos 86 anos, ela largou mão de fazer coisas que fazia antes. Um dia, eu disse que a minha mãe, não ela, mas a outra, tinha me ensinado coisas que ela não fazia mais, como não ver televisão durante o almoço, e tomar Coca-Cola só nos fins de semana.

Mamãe era um misto de contradições em que ela admitia algumas coisas e outras continuava contra. Pegou-se, certa vez, censurando o Lula, quando ela se deu conta de que isso era julgamento. "Saia do julgamento", dizia ela. O que mais me espantou, de outra vez, foi ela, que continuamente fazia "exercícios de perdão" por causa do "Curso em Milagres", que estudou por 20 anos, foi ter descoberto que não perdoara o pai por ter morrido aos 40 anos quando ela nem tinha completado dois. Cresceu sem pai. Mas a mãe ocupou o restante de sua vida até minha mãe ter 47 anos. 

Ela começou a ter cabelos brancos muito cedo: aos 30 anos, já tinha cabelos grisalhos. E eu ao 10, morria de vergonha de ter uma mãe mais "velha" diferente de outras mães tão lindas e jovens. Mas minha mãe era mais velha que as outras, pois se casou mais tarde e eu só nasci quando ela já tinha 29 anos, quase uma anciã em 1957! Quando me perguntavam quem era, eu dizia que era minha avó!

Avó que nunca tive, pois nenhuma das duas tomou conta de mim nem ia me buscar na escola. Minha mãe era rígida quanto a horários e deveres de casa. Queria preencher nosso tempo com natação, aula de balé para mim e judô para meu irmão, aula de pintura, aula de violão, aula de inglês na Cultura e francês na Aliança. Não queria que tivéssemos tempo ocioso. Quando chegava fim de semana, nos levava para fazer piqueniques na Barra ou andar na Floresta da Tijuca, quando não enfrentávamos uma viagem de carro até São Paulo. 

Mamãe não parava nunca. Arquiteta, trabalhava de sol a sol, fazendo casas populares. E ainda achavam que ela trabalhasse demais. O lanche de fim de semana era uma festa. Tinha comida para um batalhão. Se chegasse visita de última hora, poderia sentar para comer que ainda iria sobrar. 

Essa era a outra mãe que eu tinha, que me ensinou que mulher tem que ter sua independência financeira e não depender de ninguém. Que eu não poderia casar antes de me formar, e que deveria andar com os melhores da turma para ser como eles. Dava mais valor à inteligência do que à beleza, e aos 10 anos quando precisei começar a usar óculos, ela disse: "Ainda bem, assim você não vai parecer tão bonita". 

Achei que ser bela era um mal. Mas a confusão emocional que minha criação me trouxe extravasou para o lado criativo, pois ela incentivava tudo que eu quisesse fazer, pois ela não sabia o que eu seria quando crescesse, mas sempre dava palpites. Fiz de tudo um pouco, do violão à dança, do Direito à poesia, passando pela tradução e me tornando editora. Mas o que ela não esperava ela confessou na estreia da minha peça "Breve anunciação" em Niterói, em 2013: "Eu previ tudo que Thereza Christina fez, mas eu não previ isto". 

Isto, para ela, era o Olimpo. No teatro, estavam os maiores atores e atrizes que ela conhecia, de Procópio e Bibi Ferreira a Tônia Carreiro e Paulo Autran. Ela adorava me levar ao teatro, de "Hello Dolly!" e "My Fair Lady" a "Fluft, o fantasminha", "O rapto das cebolinhas" e "A volta do Camaleão Alface". Quando minha peça estreou, ela não cabia em si de contente e surpresa ao mesmo tempo. A peça era um diálogo poético sobre a sedução que escrevi entre 2000 e 2005 e levou 12 anos para estrear. Sem saber, escrevi a conversa entre meu pai e sua ex-noiva quando se encontraram em Teerã em 1951. Nós sabíamos da história pelas cartas dela, mas ao escrever eu não tinha essa intenção. Quando a peça foi montada por João Corrêa, com Jean Cândido Brasileiro e Helena Hamam, que faziam o casal, nos anos 1940, eu percebi o que tinha escrito. 

Sempre me perguntam se minha mãe teve ciúmes. Ela dizia que não, porque afinal, meu pai se casou com ela, e não com a ex-noiva, que serviu de modelo para que ele a escolhesse, ou seja, é a razão da minha existência. Sem minha mãe e meu pai, eu não existiria. Jamais seria filha da noiva. 

Minha outra mãe me ensinou tudo. Até como estudar, pesquisar, o que ler, onde ir. Me dava os livros que eu precisava ler. Quando eu tinha oito anos, ela suspendeu a televisão, e só comprou outra dez anos depois. A televisão importada quebrou e não tinha conserto, e ela achou que meu irmão de seis anos não deveria imitar o Lilico, assim baniu a TV de casa e cresci sem ver novelas e todos os programas da TV Globo. Não senti falta. O que não passava em casa, ficava sabendo pelos amigos ou nas revistas no cabeleireiro. 

Minha mãe queria atingir a perfeição, que ela achava estar longe dela. E os erros fatais foram não ter acreditado mais em si mesma e achar que existiria um pote de ouro no final do arco-íris, pois sonhava em ganhar a sorte grande. Mas era pródiga. Não podia ter dinheiro que gastava tudo. 

Herdeira de pais ricos, nunca foi rica. Recebeu 46 casas de herança e não sobrou nenhuma. Quando vendeu a sua parte da casa da minha avó na Av. Brasil esquina com a Rua Venezuela em São Paulo, comprou três carros, um para ela, um para mim e outro para meu irmão e viajou para a Rússia para ver a Perestroika de perto. O ano era 1989. Ela se repreendeu de ter gastado todo o dinheiro. Mas quando veio o Plano Collor em março de 1990 ela não tinha nada para ser bloqueado e deu pulinhos de felicidade. 

Sonhadora, queria encontrar a Verdade, e acreditava que a resposta estava no perdão, mesmo que ela não conseguisse perdoar a todos, nem a si mesma. Na véspera do dia em que morreu, fui ao hospital e disse a ela: "Acabou, vai ao encontro de papai, ele está lá, te esperando". Seis horas depois, ela partiu. Eu sei que papai, que morreu há mais de 40 anos, ficou 32 anos esperando por ela. Se ele não a tivesse escolhido para se casar com ele, eu não existiria.

Feliz Dia das Mães, que este ano cai no dia seguinte ao seu 95o. aniversário.  

Rio, 10 de maio de 2023 - 12h36