domingo, 16 de agosto de 2020

Lições de sábado 373

Hoje, meu pai completaria 103 anos de idade, como meu tio Renato, irmão de minha mãe, que mora em Bauru, que aniversariou dia 14, seguindo de perto o irmão, Tio Flamínio, que acabou de completar 100 anos no dia 13.

Por muitos anos (ou seja, a vida inteira, e até a morte da minha mãe, em 2014), acreditei que meu pai tivesse nascido em 1919, e não em 1917, como está em sua certidão de nascimento. Ele contava uma história arrevesada, dizendo que meu avô antecipara dois anos para ele poder entrar mais cedo na escola. Depois que mamãe morreu, encontrei um cartão postal com a foto de meu pai com um ano e pouco de idade, tirada em 1918 em Belém do Pará! 

A anotação é de minha Tia Fafinha, irmã mais velha de Bibi, como ele era chamado pelas irmãs. Afra Serôa da Motta era seu nome real, e suas irmãs eram América (Tia Mequinha ou Norma), Europa (Tia Ena) e Ásia (Tia Margot ou Margarida). Esses nomes faziam parte da alegoria da família, pois, como as irmãs, Tia Fafinha também era chamada Tia Ruth. Mas o cartão postal desfez o mistério e a lenda sobre a idade de papai. Ele não queria parecer tão mais velho que mamãe e, por vaidade, contou essa história para boi dormir. Afinal, ser nove anos mais velho era melhor do que onze. E minha mãe nunca desconfiou de nada.

Mas o dia 16 de agosto está correto, e por isso recebeu o nome Rocque, por ser o santo do dia. E Benedicto foi devido à promessa de minha avó, Possidônia Semíramis de Barros Motta, para que, se fosse filho homem, vingasse. E vingou. E ganhei o Rocque como sobrenome, e meu pai deixou de ter Carlos junto com os dois outros prenomes, porque meu avô Ezequiel achou que havia nomes demais. Porém esse nome consta da certidão de batismo.

Mas não era nada disso o que eu realmente queria falar sobre meu pai, embora essas histórias sejam irresistíveis. Eu me lembrei de que, quando morava em Montevidéu, eu gostava de acordar mais cedo e de ir para a sala  sozinha sem ninguém me supervisionando, como numa visita guiada. Mas, em outras vezes, eu ia até o quarto dos meus pais e roubava o travesseiro dele, porque tinha o cheirinho do meu pai. Ele já ficava atento pela manhã quando ouvia meus passos pelo corredor e pensava: "Lá vem o ladrão de travesseiro!" Eu me lembro de ter feito isso uma vez, mas guardei a sua observação. Isso o divertia muito.

O apartamento em Montevidéu era grande e, ao lado do quarto, ficava a biblioteca, que também tinha um cheiro especial: a água de colônia No. 4711 de papai se misturava ao cheiro dos livros. Todos os seus quartos tinham esse perfume, até os quartos de hotel onde ele morou ao longo da vida. Era um ambiente imantado, onde só se podia entrar muito bem convidado. Meu quarto ficava no fim do corredor, depois do quarto do meu irmão. É um lugar inesquecível para mim, onde vivi entre os três e cinco anos. Inesquecível, também, por causa de papai. 

A vida faz umas torções que nunca esperamos. Vivemos juntos até eu ter uns sete anos, quando minha mãe se separou dele. E ela só foi até o fim do desquite, em 1971, por tê-lo começado, pois ele tentou, a todo custo, convencê-la do contrário. Muito mais tarde, Mamãe disse ter-se arrependido de haver se separado de Papai, se ela soubesse na época o que aprendeu depois. Papai levou oito anos tentando convencê-la a desistir da separação litigiosa. E ela só venceu, porque entrou com uma ação de alimentos que tiraria a metade do salário dele, aí ele cedeu. 

Isso aconteceu às vésperas de minha primeira viagem à Europa, aos 13 anos, junto com Papai e meu irmão, que tinha 11 anos. Aquele menino que nasceu em Belém do Pará, que era 11 anos mais velho que minha mãe e queria parecer mais novo, que se casou com ela porque achou que ela seria a melhor mulher do mundo para ele, nunca desistiu dessa paixão. 

Um dia, viajando de ônibus para visitar uma estátua de Nossa Senhora que chora, a médium sentada ao lado dela perguntou quem era um senhor bem vestido, de gravata, que estava ali falando com ela. Pela descrição, disse minha mãe, só poderia ser seu marido. "Ele gosta muito da senhora", ela continuou, "e disse que está do outro lado esperando por você". 

Foi o que eu lembrei à minha mãe antes de ela morrer, ela se segurando à vida, mesmo com todos os sinais vitais falhando, eu disse: "Mamãe, Papai está esperando por você do outro lado, lembra? Vá encontrar com ele". Na manhã seguinte, às 7 horas, ela se foi. 

Não há como não lembrar de tudo isso num dia como hoje, 16 de agosto, dia do nascimento do meu pai, há 103 anos.  

16/08/2020 - 12h12

 

 

 

   

sábado, 8 de agosto de 2020

Lições de sábado 372

Aos 100 mil mortos por Covid-19, não sabemos onde isso nos levará. Hoje tive um sonho distópico. Explicavam-me passo a passo como seria essa nova realidade. Embora eu não me lembre nem um pouco do que foi dito, meu sonho tinha sensação de realidade. Tínhamos que se seguir certos "protocolos". Ninguém estava livre de contágio. Ninguém podia fazer o que lhe desse na cabeça. O momento era plúmbeo. Embora uma voz me dissesse tudo o que eu deveria fazer, eu ainda tentava compreender o que estava acontecendo. 

Meu esforço foi em vão. Acordei pensando que não tinha sonhado. Que tinha tido uma visão de futuro. Mas que visão era essa que eu não conseguia entender? O subconsciente submergiu novamente sem me dizer mais nada. 

Há mistérios que são insondáveis. Há momentos que são inesquecíveis. Vivemos mais quando estamos atentos e ao mesmo tempo distraídos. Sabemos sem saber. E ao perceber que tudo está dando certo mesmo em meio ao pandemônio, entendemos que nada foi inútil ao longo do caminho. Tudo serviu a uma boa causa, mesmo que a causa fosse desconhecida. Por isso as paralelas se encontram no infinito. Porque lá na frente os desígnios serão revelados. Os motivos serão expostos, e todos saberão finalmente por quê. 

O que nos faz seguir em frente não são os objetivos, mas continuar tentando. O objetivo pode mudar a qualquer momento, e fazemos aquilo que não esperávamos, por só ser revelado no último instante. 

Quando pensamos retrospectivamente no que aconteceu, tudo parece se encaixar, e os propósitos estão todos claros. Mas quando se vivia aquilo, não se sabia que daria certo. Trabalharam para que desse certo, porém circunstâncias muito especiais fizeram com que tudo funcionasse.

Não sabemos hoje onde tudo nos levará. Como meu sonho distópico, eu não sei como ele termina, e desconheço sua natureza. Não somos mais os mesmos depois dessa pandemia. Nunca voltaremos ao normal. O normal não existe mais. Teremos saudades de um tempo em que não sabíamos que corríamos tanto perigo. 

Acordei hoje para o caos: 100 mil mortos nos perguntam por quê. 

Rio de Janeiro, 8 de agosto de 2020 - 14h