sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Lições de sábado 379

A simplicidade é uma condição pré-humana, ou seja, existia antes do homem. Se a humanidade não consegue ser tão simples quanto outros seres, em que sua existência é desapegada e sem adereços, dificilmente superará seus limites.

Thereza Christina Motta
26/01/2017



domingo, 3 de dezembro de 2023

Lições de sábado 378

A intuição deveria ser melhor utilizada - para nos ajudar a resolver questões insolúveis - do que para saber coisas frugais, mas deve ser o primeiro estágio da intuição avisar que a filha está chegando em casa ou quem está ligando no telefone. Já fui avisada de coisas mais sérias e mais complexas, com uma precisão milimétrica. E sempre só avisam uma vez. Algumas vezes são avisos reincidentes para que eu não o negligencie. Nosso instinto de sobrevivência está ligado a essa intuição, que nos ajuda a trafegar com mais segurança e pelos lugares certos, principalmente dizendo o que não devemos fazer. Alexandre, o Grande não fazia nada sem consultar o oráculo - um hábito entre os gregos. Deveríamos prestar mais atenção aos pequenos avisos e com o tempo aprender a expandi-los.

Por duas vezes, ao usar um relógio de pulso Ômega, que comprei na Suíça em 1984, me avisaram com um dia de antecedência que a bateria iria acabar. Cada bateria dura 4 anos e a troca não foi em anos sucessivos. Acho muito curioso como algo completamente "insignificante" possa ter relevância, mas como eu disse, deve ser para treinar os ouvidos. Um desses "avisos" em breve se tornará um livro. Por alguma razão que desconheço, herdei cartas da ex-noiva do meu pai, que esteve presente no dia do enterro dele. Antes de fecharem o caixão, observando minha mãe se debulhar em lágrimas, eu ouvi nitidamente uma voz me dizer: "Está presente aqui uma mulher que está chorando por seu pai como se fosse ela a viúva". Claro que não pude identificá-la, mas no dia seguinte à missa de sétimo dia, minha mãe me liga para dizer que Iza, a ex-noiva do meu pai queria de volta as cartas que escrevera para ele. Surpresa, eu perguntei se ela estava no enterro, quando minha mãe disse que sim. Eu disse que picava, rasgava, queimava as cartas, mas não devolvia nada, porque ela não tinha direito de vir falar mal de meu pai depois de ele ter morrido. E esqueci o assunto. No dia do aniversário de 80 anos de meu pai, as cartas ressurgiram, encontradas por acaso pela minha mãe no meio da estante, pois Iza nunca viera buscá-las, mesmo depois que eu disse que ela poderia. Aí, sim, eu resolvi lê-las, quando descobri a história de amor mais quente que já tinha ouvido falar. Mas descobri que meu pai não se casou com ela por vingança, pois ela o havia rejeitado antes. E jurara a si mesmo que iria se casar com uma mulher completamente diferente dela. Resultado, escolheu minha mãe. Ou seja, ela é a razão da minha existência. Sem ela, meu pai jamais teria decidido que minha mãe seria a mulher perfeita para ele. Entre se conhecerem e casar, foram dois meses. Iza amargou mais de dez anos esperando que meu pai a desposasse, antes de ele sumir na estrada. Minha intuição me avisava que eu deveria prestar atenção nessa história que depois poderia se tornar um romance epistolar. Senão, para que me avisar que ela estava presente ao enterro? Tenho histórias de coincidências, avisos, intuições, acasos objetivos, sincronicidades de cair o queixo. Minha vida é cheia delas, nada é por acaso, e sempre me avisam de alguma coisa, e algumas vezes eu não sei entender os avisos. Isso me aborrece. Eu tenho que treinar mais, e estar mais atenta aos avisos que valem a pena ser ouvidos, não só baterias que acabam ou pessoas que telefonam. A intuição, como instinto animal, serve para nossa preservação. Os elefantes não se afogaram no tsunami, porque correram para o alto das montanhas. Como eles sabiam? Vai saber... Rio de Janeiro, 3 de dezembro de 2012



terça-feira, 13 de junho de 2023

Lições de sábado 377

Dia 13 de junho é um dia enigmático, não só pelo que ele carrega em si, mas pelos seus acontecimentos. É dia de Santo Antônio, dia do nascimento de Fernando Pessoa, dia de Ogum, santo padroeiro no Rio de Janeiro e na Bahia, e da abertura das festas juninas no Brasil. 

O Brasil é um lugar de celebrações. E ainda é o Dia do Turista, esse ser que se aventura por tantos lugares só para tirar fotos e dizer "Eu estive aqui". 

Santo Antônio é o de Lisboa, aquele que foi tirar o pai da forca, saindo de Pádua e atravessando a Europa a pé. Santo Antônio é casamenteiro, carrega o Menino Jesus e também cuida das crianças e ajuda a encontrar objetos perdidos, dando uma força a São Longuinho. Ajuda a conceber filhos e traz proteção e prosperidade, por isso as casas em geral têm a imagem de Santo Antônio junto à porta, além de Nossa Senhora de Fátima e de São Jorge. 

Santo Antônio de Lisboa nasceu em 1195 e morreu nesse dia em 1231, um santo católico para ninguém botar defeito. Meu pai era devoto dele. Ele me dizia que toda vez que eu passasse em frente a uma Igreja de Santo Antônio, entrasse e desse uma esmola para os pobres. 

Em 1373, Portugal assina, com a Inglaterra, a Aliança Luso-Britânica, a mais antiga aliança entre nações ainda em vigor. Não é à toa que eles trouxeram D. João e a família real portuguesa ao Brasil nos seus navios para protegê-los de Napoleão. Amigo é para essas coisas. 

Santo Antônio veio de Portugal, a reboque dos portugueses, que trouxeram também o São Jorge, herdado dos ingleses, mas aí já é outra história. Santo Antônio ajudou os portugueses a expulsar os franceses do Rio de Janeiro e por isso ergueram uma igreja no alto do monte, no Largo da Carioca.

Em 1808, foi criado pelo Príncipe Regente D. João, o Jardim Botânico, onde antes era uma fábrica de pólvora e um cemitério de escravos. Está lá até hoje, com suas palmeiras imperiais e plantas de todo o mundo. 

Em 1917, aconteceu a segunda aparição de Nossa Senhora de Fátima, em Ourém, aos três pastorzinhos, deixando Portugal em suspense até 13 de outubro, quando aconteceu a última aparição. A Primeira Guerra ainda iria acabar no ano seguinte e ela confidenciou às crianças três segredos, que até hoje tiram o sono dos papas. 

Quando eu era menina, aprendi a fazer simpatias para saber com quem eu iria casar, colocando papeizinhos dentro de uma vasilha de água à noite, no dia 12 de junho, como os nomes dos meninos de quem eu gostava, e o papelzinho que amanhecesse aberto, seria o do escolhido. Aprendi com minha babá portuguesa, Zulmira, que entendia tudo de Santo Antônio.

Há tantas lendas e mitos em torno do santo que nos espantamos com sua presença constante. Mesmo sendo um santo católico, ele atravessa os tempos seguindo incólume, como o defensor dos desvalidos, dos desprotegidos, dos que precisam de auxílio de qualquer tipo.

A fé move montanhas e os homens são movidos à fé. Não sei no que acreditam, mas algo os faz seguir adiante. Se não for para casar e ter filhos, é para prosperar e defender o lar. Um santo tão querido tinha que ser de Lisboa, esse lugar ancestral de nossos antepassados. 

Feliz aniversário a Hariklia, minha amiga greco-brasileira, que nasceu nesse dia, com a proteção de Santo Antônio. 

13 de junho de 2023 - 10h08 



quarta-feira, 10 de maio de 2023

Lições de sábado 376

A outra mãe

Minha mãe fazia aniversário em 13 de maio, que, vez ou outra, caía num Dia das Mães e, por isso, nunca comemoramos o Dia das Mães, mas somente o seu aniversário, por ser mais importante. Dia comercial que inventaram para vender mais presentes. O mesmo para Dia dos Pais, Dia das Crianças, Dia dos Namorados, Dia dos Avós, Dia da Secretária e mais de tudo e qualquer outra coisa que quisessem inventar. 

Os dias foram feitos para comemorar tudo. Antes eram os Santos, além do Natal e Ano Novo, Carnaval, Páscoa, Corpus Christi, quando já foram os Sabás celtas que determinavam as estações e a passagem do tempo. Em junho, temos dias de três santos: Santo Antônio, São João e São Pedro, mas também comemoramos outros espalhados pelo ano. 

Mas era do Dia das Mães que eu queria falar: quando minha mãe chegou aos setenta, ela mudou. Deixou de ser tão exigente, porque achava que não adiantava mais. E até o seu falecimento em 2014, aos 86 anos, ela largou mão de fazer coisas que fazia antes. Um dia, eu disse que a minha mãe, não ela, mas a outra, tinha me ensinado coisas que ela não fazia mais, como não ver televisão durante o almoço, e tomar Coca-Cola só nos fins de semana.

Mamãe era um misto de contradições em que ela admitia algumas coisas e outras continuava contra. Pegou-se, certa vez, censurando o Lula, quando ela se deu conta de que isso era julgamento. "Saia do julgamento", dizia ela. O que mais me espantou, de outra vez, foi ela, que continuamente fazia "exercícios de perdão" por causa do "Curso em Milagres", que estudou por 20 anos, foi ter descoberto que não perdoara o pai por ter morrido aos 40 anos quando ela nem tinha completado dois. Cresceu sem pai. Mas a mãe ocupou o restante de sua vida até minha mãe ter 47 anos. 

Ela começou a ter cabelos brancos muito cedo: aos 30 anos, já tinha cabelos grisalhos. E eu ao 10, morria de vergonha de ter uma mãe mais "velha" diferente de outras mães tão lindas e jovens. Mas minha mãe era mais velha que as outras, pois se casou mais tarde e eu só nasci quando ela já tinha 29 anos, quase uma anciã em 1957! Quando me perguntavam quem era, eu dizia que era minha avó!

Avó que nunca tive, pois nenhuma das duas tomou conta de mim nem ia me buscar na escola. Minha mãe era rígida quanto a horários e deveres de casa. Queria preencher nosso tempo com natação, aula de balé para mim e judô para meu irmão, aula de pintura, aula de violão, aula de inglês na Cultura e francês na Aliança. Não queria que tivéssemos tempo ocioso. Quando chegava fim de semana, nos levava para fazer piqueniques na Barra ou andar na Floresta da Tijuca, quando não enfrentávamos uma viagem de carro até São Paulo. 

Mamãe não parava nunca. Arquiteta, trabalhava de sol a sol, fazendo casas populares. E ainda achavam que ela trabalhasse demais. O lanche de fim de semana era uma festa. Tinha comida para um batalhão. Se chegasse visita de última hora, poderia sentar para comer que ainda iria sobrar. 

Essa era a outra mãe que eu tinha, que me ensinou que mulher tem que ter sua independência financeira e não depender de ninguém. Que eu não poderia casar antes de me formar, e que deveria andar com os melhores da turma para ser como eles. Dava mais valor à inteligência do que à beleza, e aos 10 anos quando precisei começar a usar óculos, ela disse: "Ainda bem, assim você não vai parecer tão bonita". 

Achei que ser bela era um mal. Mas a confusão emocional que minha criação me trouxe extravasou para o lado criativo, pois ela incentivava tudo que eu quisesse fazer, pois ela não sabia o que eu seria quando crescesse, mas sempre dava palpites. Fiz de tudo um pouco, do violão à dança, do Direito à poesia, passando pela tradução e me tornando editora. Mas o que ela não esperava ela confessou na estreia da minha peça "Breve anunciação" em Niterói, em 2013: "Eu previ tudo que Thereza Christina fez, mas eu não previ isto". 

Isto, para ela, era o Olimpo. No teatro, estavam os maiores atores e atrizes que ela conhecia, de Procópio e Bibi Ferreira a Tônia Carreiro e Paulo Autran. Ela adorava me levar ao teatro, de "Hello Dolly!" e "My Fair Lady" a "Fluft, o fantasminha", "O rapto das cebolinhas" e "A volta do Camaleão Alface". Quando minha peça estreou, ela não cabia em si de contente e surpresa ao mesmo tempo. A peça era um diálogo poético sobre a sedução que escrevi entre 2000 e 2005 e levou 12 anos para estrear. Sem saber, escrevi a conversa entre meu pai e sua ex-noiva quando se encontraram em Teerã em 1951. Nós sabíamos da história pelas cartas dela, mas ao escrever eu não tinha essa intenção. Quando a peça foi montada por João Corrêa, com Jean Cândido Brasileiro e Helena Hamam, que faziam o casal, nos anos 1940, eu percebi o que tinha escrito. 

Sempre me perguntam se minha mãe teve ciúmes. Ela dizia que não, porque afinal, meu pai se casou com ela, e não com a ex-noiva, que serviu de modelo para que ele a escolhesse, ou seja, é a razão da minha existência. Sem minha mãe e meu pai, eu não existiria. Jamais seria filha da noiva. 

Minha outra mãe me ensinou tudo. Até como estudar, pesquisar, o que ler, onde ir. Me dava os livros que eu precisava ler. Quando eu tinha oito anos, ela suspendeu a televisão, e só comprou outra dez anos depois. A televisão importada quebrou e não tinha conserto, e ela achou que meu irmão de seis anos não deveria imitar o Lilico, assim baniu a TV de casa e cresci sem ver novelas e todos os programas da TV Globo. Não senti falta. O que não passava em casa, ficava sabendo pelos amigos ou nas revistas no cabeleireiro. 

Minha mãe queria atingir a perfeição, que ela achava estar longe dela. E os erros fatais foram não ter acreditado mais em si mesma e achar que existiria um pote de ouro no final do arco-íris, pois sonhava em ganhar a sorte grande. Mas era pródiga. Não podia ter dinheiro que gastava tudo. 

Herdeira de pais ricos, nunca foi rica. Recebeu 46 casas de herança e não sobrou nenhuma. Quando vendeu a sua parte da casa da minha avó na Av. Brasil esquina com a Rua Venezuela em São Paulo, comprou três carros, um para ela, um para mim e outro para meu irmão e viajou para a Rússia para ver a Perestroika de perto. O ano era 1989. Ela se repreendeu de ter gastado todo o dinheiro. Mas quando veio o Plano Collor em março de 1990 ela não tinha nada para ser bloqueado e deu pulinhos de felicidade. 

Sonhadora, queria encontrar a Verdade, e acreditava que a resposta estava no perdão, mesmo que ela não conseguisse perdoar a todos, nem a si mesma. Na véspera do dia em que morreu, fui ao hospital e disse a ela: "Acabou, vai ao encontro de papai, ele está lá, te esperando". Seis horas depois, ela partiu. Eu sei que papai, que morreu há mais de 40 anos, ficou 32 anos esperando por ela. Se ele não a tivesse escolhido para se casar com ele, eu não existiria.

Feliz Dia das Mães, que este ano cai no dia seguinte ao seu 95o. aniversário.  

Rio, 10 de maio de 2023 - 12h36 



  

domingo, 2 de outubro de 2022

Lições de sábado 375

Se todos os meus amigos são unânimes em suas opiniões, por que duvidar deles? Se outros amigos, por sua vez, divergem desses, que amigos são esses? 

Notei que havia filas para votar. Das duas uma: ou tem mais gente votando, ou tem menos lugar para votar. Acho que são as duas coisas. Porque só faz fila se tiver muita gente para entrar no mesmo lugar. 

Muitos amigos fotografando seu voto. Fazendo vídeo, declarando sua preferência. Hoje quando se vê uma camisa verde e amarela, sabemos que não é torcedor do Brasil, é eleitor daquele cara que entrou porque encontrou a porta aberta. 

Em 2018, eu não votei nele. Eu não iria conseguir dormir se tivesse votado, mesmo achando que o PT tinha culpa de tudo. E agora? O jogo virou, a bússola girou, o vento mudou e estamos partindo em outra direção. Tomara que mude de vez e nos livremos de uma família que adora comprar imóveis que valem milhões. Eu não entendo essa fixação por casas milionárias. 

Nunca fui rica, mas tive berço. Estudei nos melhores colégios, aprendi com os melhores professores, tenho uma árvore genealógica invejável e, no entanto, não fiquei milionária com o que sei, embora meus pais tenham gasto uma fortuna para me educar. 

O mundo mudou. Hoje não é necessário ter berço para chegar a algum lugar, nem saber nada para ter dinheiro. Vejo doutores errarem feio no português, mas têm doutorado. Eu não tenho. Mas sou eu que corrijo o que eles escrevem errado. 

Brasileiro não sabe escrever. Se soubesse, não erraria tanto. Fico pasma de ver como todos erram as mesmas coisas. Sinceramente, onde foi que deixamos de saber escrever?  

Seja qual for o resultado da eleição hoje, sei que nós tentamos mudar a direção do barco. Mais gente foi votar, fosse no Brasil ou fora dele. Na Nova Zelândia, em Portugal e na França já chegam os resultados. 

Viva Lula, por tudo que isso significa. 

2/10/2022 - 15h21


 

segunda-feira, 18 de abril de 2022

Lições de sábado 374

Eu sempre trabalhei no Carnaval. Morando em São Paulo desde os 19 anos, o Carnaval era momento de silêncio e reclusão. Não se ouvia nenhum batuque ou bloco, valendo mesmo o apodo de “Túmulo do Samba”. Aproveitava para ler e escrever o que estivesse atrasado, fossem cartas ou meu diário. Era um período que eu aguardava com ansiedade porque eu sabia que teria os dias de folia só para mim. Não teria que dar aulas, não teria que sair, não teria que ia a parte alguma, e ficaria naqueles quatro dias entregue aos meus afazeres. Enquanto os outros se esbaldavam em bailes em clubes fechados, eu tinha esse tempo livre para pôr tudo em dia. 

Eu não via carnaval na TV, nem me importava com nenhuma campeã, afinal isso estava acontecendo no longínquo Rio de Janeiro. A única vez que fui a um baile foi aos dez anos de idade, num clube em São Paulo levada por minha mãe que achava que eu tinha que “brincar” no Carnaval. Pra nunca mais. Lembro ainda de um baile infantil que meu pai me levou no Theatro Municipal quando os desfiles ainda eram na Avenida Presidente Vargas e os blocos desciam a Avenida Rio Branco. Aí inventaram o Sambódromo, o Carnaval mudou-se para lá, mas a cidade continua insuportável. 

Quando voltei ao Rio de Janeiro, tive que me lembrar do que era conviver com o Carnaval após 23 anos de exílio. Até escrevi um conto quando ainda morava no Rio, aos 18 anos, chamado “Carnaval ou quase isso”, inspirada em Mario de Andrade. Esse é um Carnaval que não existe mais. Logo depois, me mudei para São Paulo e o Carnaval acabou. Mesmo tendo voltado para o Rio, continuo trabalhando no Carnaval, pois é o melhor momento para fazer o que nunca tenho tempo de concluir. São dias contínuos sem interrupção, como um feriado prolongado. O que mais temos no Brasil são feriados, e agora o que mais temos é Carnaval.

18/04/2022 - 11h53




domingo, 16 de agosto de 2020

Lições de sábado 373

Hoje, meu pai completaria 103 anos de idade, como meu tio Renato, irmão de minha mãe, que mora em Bauru, que aniversariou dia 14, seguindo de perto o irmão, Tio Flamínio, que acabou de completar 100 anos no dia 13.

Por muitos anos (ou seja, a vida inteira, e até a morte da minha mãe, em 2014), acreditei que meu pai tivesse nascido em 1919, e não em 1917, como está em sua certidão de nascimento. Ele contava uma história arrevesada, dizendo que meu avô antecipara dois anos para ele poder entrar mais cedo na escola. Depois que mamãe morreu, encontrei um cartão postal com a foto de meu pai com um ano e pouco de idade, tirada em 1918 em Belém do Pará! 

A anotação é de minha Tia Fafinha, irmã mais velha de Bibi, como ele era chamado pelas irmãs. Afra Serôa da Motta era seu nome real, e suas irmãs eram América (Tia Mequinha ou Norma), Europa (Tia Ena) e Ásia (Tia Margot ou Margarida). Esses nomes faziam parte da alegoria da família, pois, como as irmãs, Tia Fafinha também era chamada Tia Ruth. Mas o cartão postal desfez o mistério e a lenda sobre a idade de papai. Ele não queria parecer tão mais velho que mamãe e, por vaidade, contou essa história para boi dormir. Afinal, ser nove anos mais velho era melhor do que onze. E minha mãe nunca desconfiou de nada.

Mas o dia 16 de agosto está correto, e por isso recebeu o nome Rocque, por ser o santo do dia. E Benedicto foi devido à promessa de minha avó, Possidônia Semíramis de Barros Motta, para que, se fosse filho homem, vingasse. E vingou. E ganhei o Rocque como sobrenome, e meu pai deixou de ter Carlos junto com os dois outros prenomes, porque meu avô Ezequiel achou que havia nomes demais. Porém esse nome consta da certidão de batismo.

Mas não era nada disso o que eu realmente queria falar sobre meu pai, embora essas histórias sejam irresistíveis. Eu me lembrei de que, quando morava em Montevidéu, eu gostava de acordar mais cedo e de ir para a sala  sozinha sem ninguém me supervisionando, como numa visita guiada. Mas, em outras vezes, eu ia até o quarto dos meus pais e roubava o travesseiro dele, porque tinha o cheirinho do meu pai. Ele já ficava atento pela manhã quando ouvia meus passos pelo corredor e pensava: "Lá vem o ladrão de travesseiro!" Eu me lembro de ter feito isso uma vez, mas guardei a sua observação. Isso o divertia muito.

O apartamento em Montevidéu era grande e, ao lado do quarto, ficava a biblioteca, que também tinha um cheiro especial: a água de colônia No. 4711 de papai se misturava ao cheiro dos livros. Todos os seus quartos tinham esse perfume, até os quartos de hotel onde ele morou ao longo da vida. Era um ambiente imantado, onde só se podia entrar muito bem convidado. Meu quarto ficava no fim do corredor, depois do quarto do meu irmão. É um lugar inesquecível para mim, onde vivi entre os três e cinco anos. Inesquecível, também, por causa de papai. 

A vida faz umas torções que nunca esperamos. Vivemos juntos até eu ter uns sete anos, quando minha mãe se separou dele. E ela só foi até o fim do desquite, em 1971, por tê-lo começado, pois ele tentou, a todo custo, convencê-la do contrário. Muito mais tarde, Mamãe disse ter-se arrependido de haver se separado de Papai, se ela soubesse na época o que aprendeu depois. Papai levou oito anos tentando convencê-la a desistir da separação litigiosa. E ela só venceu, porque entrou com uma ação de alimentos que tiraria a metade do salário dele, aí ele cedeu. 

Isso aconteceu às vésperas de minha primeira viagem à Europa, aos 13 anos, junto com Papai e meu irmão, que tinha 11 anos. Aquele menino que nasceu em Belém do Pará, que era 11 anos mais velho que minha mãe e queria parecer mais novo, que se casou com ela porque achou que ela seria a melhor mulher do mundo para ele, nunca desistiu dessa paixão. 

Um dia, viajando de ônibus para visitar uma estátua de Nossa Senhora que chora, a médium sentada ao lado dela perguntou quem era um senhor bem vestido, de gravata, que estava ali falando com ela. Pela descrição, disse minha mãe, só poderia ser seu marido. "Ele gosta muito da senhora", ela continuou, "e disse que está do outro lado esperando por você". 

Foi o que eu lembrei à minha mãe antes de ela morrer, ela se segurando à vida, mesmo com todos os sinais vitais falhando, eu disse: "Mamãe, Papai está esperando por você do outro lado, lembra? Vá encontrar com ele". Na manhã seguinte, às 7 horas, ela se foi. 

Não há como não lembrar de tudo isso num dia como hoje, 16 de agosto, dia do nascimento do meu pai, há 103 anos.  

16/08/2020 - 12h12