domingo, 27 de março de 2016

Lições de sábado 241

"Um beijo não dado é um beijo perdido para sempre", gritou Ana Heloísa Páscoli na sala de aula quando tínhamos treze anos. Eu não sei onde ela leu essa frase, nem quem a escreveu, mas vivíamos buscando máximas para trocar todos os dias. Não sei por quê, ela abriu os braços de frente para a classe, e soltou essa exclamação como a maior verdade encontrada. Eu parei. Aquilo me tocou de tal forma, que, a partir daquele momento, passei a tomar minhas decisões a partir dessa frase. O que eu não fizesse, eu não teria mais a chance de fazer, não do mesmo modo, caso a oportunidade voltasse. Então assim pautei minha vida, para não perder para sempre nada que eu realmente quisesse. Todas as minhas escolhas por trinta anos seguiram essa norma, e arrisquei fazer coisas que talvez não devesse, mas pela urgência daquilo que não voltaria, escolhi o que não quis colocar de lado. Ao reencontrá-la depois desse tempo, perguntei-lhe se ela se lembrava de ter dito essa frase. Ela disse que não, mas que tinha sido bom eu ter-lhe lembrado. Dois anos depois, Ana Heloísa adoeceu e veio a falecer. As escolhas para ela haviam acabado, mas não para mim. 

No dia do enterro, eu me atrasei. Peguei o táxi em Copacabana já depois de o velório ter começado e, mesmo assim, parti para o Caju. Ao sentar no carro, tocava uma música dos Carpenters. Eu me espantei pela coincidência de ter sido aquele o fundo musical de nossa adolescência. Mas ao se seguir outra e mais outra música cantada por Karen, perguntei ao motorista o que estava tocando. Ele disse ser uma fita antiga, que ele ouvia uma vez por semana. De todos os táxis no Rio de Janeiro, entrei no único que tinha uma fita dos Carpenters para me levar para o enterro de Ana Heloísa naquela manhã, tocando ao final "Close to you". Chorei todo o caminho.

Ao chegar lá, já haviam seguido para o crematório, do outro lado da entrada principal. Aturdida, atravessei o cemitério, em meio a imagens de anjos e Cristos crucificados, numa visão hiper gótica, sob um forte mormaço. No centro do cemitério, havia um cruzeiro que marcava a metade do percurso que ainda deveria seguir. Nesse momento, me veio um pensamento bem alto para que eu não deixasse de ouvir: "Um beijo dado é um beijo guardado para sempre", como uma resposta àqueles trinta anos de indagação. De onde ela estava, Ana Heloísa me dava a resposta que eu tanto procurara. O que eu não vivi, não voltaria, mas o que eu vivesse, guardaria para sempre. Essa foi a solução que ela me trouxe, resolvendo a equação que eu deixara por tanto tempo em aberto. Só poderia ter vindo dela, a mesma que me apresentou a questão, que conduziu toda a minha vida.

27/03/2016 - 22h15 - Domingo de Páscoa


XX
Para Ana Heloísa Páscoli (1957-2001)

Um dia a menina gritou:
“Um beijo não dado é um beijo perdido!”
e ecoou numa eternidade e seguiu sei lá para onde,
atravessando um ouvido lá, um peito ali,
talvez uns olhos.

Eu atravessei a vida,
os desertos, os oásis e seus rostos
e um dia chegou a mim e ouvi:
“Um beijo não dado é um beijo perdido!”

Pasmo, confuso, aturdido,
vi o clarão no meu caminho para Damasco,
olhei para trás e pensei:
“Meu Deus, meus Deus...
O que deixei pelos caminhos,
tudo perdi, só agora o sei...”

in "Diários de amor perdido" (2008), de João José de Melo Franco






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